26/03/2008

Santos, mortos e alguns vivos

"Santos, mortos e alguns vivos"
de Viale Moutinho

"Quando eu regressei à cidade do Funchal, não consegui reconhecê-la, mas efectivamente não me enganara no caminho. Muitos dias caminhara sobre as duras águas e todos os viajantes e mendigos, nas tabernas e nas pousadas, que encontrara pela ronda dos mares, me haviam dito que seguisse em frente, sempre em frente. E, então, houve uma altura em que as aves da Europa se sumiram e no céu apenas se viam farrapos de nuvens e um que outro desses homens estranhos com as suas, aliás não menos estranhas, máquinas voadoras. A minha missão, apercebia-me na meditação própria das grandes viagens a pé, era demasiado perigosa, mas seria mais fácil a entrada na cidade de um só missionário do que de um grupo, por muito espalhado que fosse. Não tardariam os esbirros do Ogre em se aperceberem do aspecto andrajoso e cansado de uns quantos de olhares turvos, vozes murmurantes, coincidindo aqui e ali, que ocultavam as suas armas nos cinturões e nas dobras das largas roupas de caminhantes. Acabariam por suspeitar de nós. Mesmo assim, alguém nas minhas costas, aos primeiros passos dentro da cidade, me perguntou o nome e consegui enredar a conversa até descobrir donde procedia a voz. Era o guarda de um palácio onde, soube mais tarde, se juntavam periodicamente os servos do Ogre para darem forma legal às suas arbitrariedades. Por isso, no momento de pronunciar o meu nome, emiti sons ininteligíveis, sorrindo bondosamente e levando as mãos ao coração. E ele, não querendo distrair-se demasiado comigo, nem passar por menos inteligente, acompanhou-me no sorriso, só que o dele era demasiado mecânico para o meu gosto, e aconselhou-me determinada pousada onde havia colchões de grande comodidade. Agradeci-lhe e segui caminho, entre os transeuntes que trajavam roupas coloridas, ainda que os seus rostos patenteassem infinita tristeza.

Na Rua do Portão, que segue ao longo da muralha da cidade, olhei disfarçadamente as portas das pobres casas dos pescadores, e na sétima havia um desenho que me fez deter, uma pequena mão de sangue, como se uma criança ali quisesse assinalar o seu desespero, era o sinal combinado, mas, com precipitação, lamentei a falta de sentido clandestino daquele com quem me iria encontrar. Por uma questão de precaução, voltei a contar as casas e as portas, conferindo ser a sétima, baixei o olhar, agradecendo aos espíritos que naquele dia 2 de Novembro me protegiam dos esbirros do Ogre, e ao erguê-lo de novo, notei, mas já sem admiração, que a mesma pequena mão de sangue se multiplicara por todas as portas da rua, até ao Largo do Corpo Santo. Aí, sentado no chão, olhando-me com ar irónico, aí estava o meu velho amigo galego Pedro Gonçalves. (...).



O texto censurado para o Funchal 500 anos alegando que não se enquadrada na antologia "Doze Meses no Funchal" e por "motivos pessoais do seu relacionamento [Fournier] com o Governo Regional" e por "todas as consequências negativas que daí poderiam advir se repercutiriam sobre ele [Fournier]".

Pior do que a censura oficial é a censura preventiva...

Porque será que alguém acha que falar de Ogres e Esbirros afecta o poder regional?
Carapuças há muitas!

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